Madeira Molhada
A luz fraca da lamparina fazia sombras inquietas nas paredes e no chão. Lá fora, um vento frio melodiava nos ramos e nas árvores, exercendo um musical perseverante em palco poeirento, e sob um céu tenebroso. As folhas que cobriam o rancho de paredes de pau-a-pique barreadas, vez em quando emitiam estalidos compassados, resistindo à luta contumaz. Parecia fim de mundo. Os meninos tremiam em cima das banquetas, chocando as pernas, entoando, baixinho, uma reza antiga:
- Senhor São Bento,
Fecha a porta do vento
E abre a do Sacramento.
E a água desceu com vontade. Relâmpagos e trovões enchiam as trevas. Clarões e estrondos a cegar e a ensurdecer. Respingos e goteiras por todos os cantos.
- Chuva que vem do sul é sempre assim – comentou o velho que fumava cachimbo, calçado de botas e vestindo um colete de couro. O chapéu de palha ele trazia nas mãos calejadas.
Se sentia medo ninguém sabia, pois não o demonstrava. Seu filho, homem franzino e envelhecido pelo trabalho árduo, punha as mãos na cabeça a cada relâmpago que cortava o espaço. A nora, caco de mulher, mais corajosa que o marido, dava o peito magro ao rebento de seis meses, sustentando no colo outro que dormia. Os da reza antiga, quatro esqueletinhos formando um par de casais, agora, os olhos arregalados, amontoavam-se numa banqueta maior. E rezando alto.
Um corisco caiu nas cercanias, estremecendo a terra.
- Meu Divino Pai do céu!
O grito veio do franzino e as crianças se abriram num berreiro feio. O avô se acomodou no meio delas, enlaçando-as com os braços. Uma janela bateu forte contra a parede, jogando pedaços de reboco no chão. A água escorreu fria até os pés da mulher raquítica.
- Vai fechar a janela, Tião, que os meninos pega um resfriado.
- Ou pneumonia – rouquejou o de cabelos brancos, já com o chapéu sobre eles.
O homem teve que escorar a janela com um pau de lenha, visto que a tramela desaparecera no escuro. Tinha hora que o foguinho da lamparina quase apagava, mas ia crescendo de novo, até desenhar novas sombras inquietas, assombrosas, deformadas, enquanto o pavio diminuía lentamente de tamanho, transformando-se em fuligem e fumaça.
Interessante um foguinho daquele dar tanta vida a um ambiente, e às pessoas que dele tomam parte. Duma importância ilimitável, criativo e espontâneo, imprevisto em sua tarefa - seja ela de iluminar, de aquecer ou simplesmente de queimar - voraz e segura. O fogo tem a sua história e as suas estórias. Primitivas. Contemporâneas. Ele se apaga, elas não. Vivem nas vidas dos viventes que as viveram. Fogo vida. Fogo morte.
Mais interessante ainda era o pequerrucho dormir tranquilo e estar mamando até agora. Sugava o restinho das forças da pobre mãe. O barulho acordara o do colo. Ele não. Ligava nem um pouco para o que ocorria em seu redor. Mamava ou apenas mantinha a minúscula boca no peito murcho? E que sonhos estariam se passando naquela cabecinha?
A chuva afinou. O vento, talvez cansado de tanto soprar, foi abrandando com a graça de Deus. E o velho, que ainda fumegava o cachimbo, sabia das proezas feitas por ele lá fora. Até via as árvores contorcidas, tombadas, a água do ribeirão deflorando os barrancos barrentos, o chiqueiro inundado e o paiol espatifado terreiro afora. Sempre acontecia assim. Por que seria diferente desta vez? Imaginava também o milharal estendido na lama, perdido quase de todo. Tinham capinado a roça um dia desses, trabalhão danado, debaixo daquele sol escaldante, e a chuva veio estragando tudo. O pobre lavrador nasceu mesmo foi pra penar neste mundo. Viver de esperanças. Ele, velho cansado, nascera e crescera ali, enfiado no mato desde criança, e só possuía estórias para contar aos netos. Conseguiu botar no mundo um filho trabalhador mas fraco, sonhando sempre com a cidade grande. Ser escravo de multinacionais? De jeito nenhum. Morreria no sertão, junto do seu povo, vestindo roupa de algodão tapada com remendos, e o cabo da enxada e da foice, do machado e do facão, a calejar as mãos encardidas. Sentia um dó enorme dos inocentes magrinhos, entretidos com bois de sabugo e bonecas de milho, também jogados na batalha da sobrevivência, sem culpa, sem sonhos, sem reclamações, vivendo num conformismo de encabular. E pensar que mal o sol despontasse, a luta reiniciaria em dobro, todos juntos, novamente a reparar os estragos causados pela chuva-de-vento.
E a chuva parou. Parou o vento impiedoso. Ficou uma noite molhada e fria, e aos poucos as estrelas foram apontando as carinhas miúdas e cintilantes, alegrando o céu escuro. Tentando espantar a tristeza dos olhos úmidos e sem brilho daquela família de camponeses, continuava o seu ritual dentro do rancho a luz fraca da lamparina. Ajeitou o chapéu de palha na cabeça, ergueu-se indeciso, abriu a porta devagar. O espetáculo estava diante dos seus olhos claros, cheio de atrações satíricas e dramáticas, representando em palco lamacento. Deus assistia a tudo e ele pediu forças. Pesavam os cabelos brancos. O mesmo acontecia com os calos das mãos e do coração, sangrando uma vontade de morrer. Mudos, ouviam todos o borbulhar do ribeirão que arremessava água suja, carregando galhos, restos de coisas ali caídas. Até parecia um lamento revoltoso, proferido aos gritos, pedindo pelos pecados dos homens.
Chamou o filho e saíram dentro da noite, indo preparar um caixãozinho de madeira molhada.
Maurício Apolinário
Enviado por Maurício Apolinário em 06/06/2007
Alterado em 19/11/2012